Divaganços sobre “craftivismo”: do protesto sussurrado e feito à mão

Mini-banner Craftivismo Provérbio Indígena

Se queremos que o nosso mundo seja mais belo, gentil e justo, o nosso activismo não deveria ser também ele mais belo, gentil e justo…?

Sarah P. Corbett, autora de How to be a Craftivist: The art of gentle protest, e fundadora do Craftivist Collective

Estou cansada de gritos. Não estão também? Faz falta gritar, mas depois… o que se faz com essa raiva, essa revolta, essa indignação e pura irritação? Desesperar…? Também mas não só. Também faz falta, mas não pode ser um fim em si mesmo, antes um meio para despoletar a acção e não só uma reacção.

Este foi um Verão atípico. Um Verão que começou cedo demais e teima em não terminar para dar lugar a um Outono digno desse nome, e um Verão que foi marcado não tanto por descontracção, descanso, passeio e tempo em família, embora também tenha havido momentos assim. Foi um Verão agridoce.

O princípio e o fim foram marcados por incêndios devastadores, e por uma consciência que parece generalizada, ou quase, de que havia e há muita coisa mal que precisava e precisa de ser mudada. Mas são tantos os problemas desafios, a tarefa é tão hercúlea, que é difícil não ceder ao desespero e assoberbamento, agravado pelo sentido de urgência que cresce a cada dia.

Pessoalmente, estou cansada do “business as usual” também a nível do “ambiente psicológico” que se sente, digamos assim: dos gritos, das críticas, das agressões e dos confrontos constantes, e também da apatia e do descaso. Sinto que as respostas do costume não são adequadas ou pelo menos suficientes, e que é preciso ser criativo e procurar abordagens diferentes, radicalmente diferentes, menos “anti” e mais “pró”. Petições, manifestações contra, moções de censura, conseguem fazer muito pouco de construtivo em direcção ao que queremos criar, para além de aumentarem o sentimento de derrota, de desconfiança mútua, de cinismo, e conduzirem à resignação, à crispação e à desistência. Não necessariamente, mas também.

As mesmas leituras e pesquisas que conduziram ao Colectivo Metamorfilia, conduziram igualmente à descoberta do Craftivismo. Ou a tropeçar nele. Era inevitável, provavelmente. Se procurarmos alternativas à forma comum de fazer as coisas, de viver e de olhar o mundo, vamos encontrar alternativas também às formas comuns de fazer activismo. Desde o primeiro momento que tudo fez sentido, que me identifiquei com o conceito, e que este se tornou em mais um daqueles projectos guardados numa gaveta “até um dia”, um pouco como aconteceu com o Colectivo Metamorfilia. A urgência e a impotência que os incêndios alimentaram fez ressurgir a vontade de fazer alguma coisa, mas alguma coisa de diferente, e foi aí que o Craftivismo voltou a surgir em cena.

How to be a Craftivist: The art of gentle protest, Sarah Corbett

Mas o que é?

O termo foi cunhado em 2003 pela Betsy Greer, juntando “Craft” + “Activism”. É difícil ou mesmo impossível defini-lo de forma muito concreta: congrega todas as acções em prol de uma transformação social que usam técnicas ou expressões das artes e dos ofícios. Sob o chapéu dos “crafts” podem incluir-se as manualidades, os lavores, os ofícios, ou o que lhes quiserem chamar. Cada um feito como uma expressão pessoal, individual, do “activista”, sozinho ou integrado num colectivo.

Este é um dos elementos que me atraiu desde o primeiro contacto: a possibilidade de cada um de nós contribuir à sua maneira, imprimindo o seu cunho pessoal, com o que tem de único para dar, de acordo com o seu temperamento e com as suas circunstâncias. Como introvertida assumida que sou, a ideia de “ir para a rua gritar”, como dizia o poeta, causa-me alguns calafrios. Há quem dê o melhor de si em voz baixa, sozinha ou em pequenos grupos, de forma tranquila e até sussurrada. Mas nem sempre sussurrada.

IMG_20171101_160519_289O conceito não é novo: desde pelo menos o movimento das sufragistas que o vemos em acção, geralmente como ferramenta de intervenção social e política das mulheres, devido à natureza doméstica e íntima, tipicamente feminina, das técnicas usadas: crochet, bordado, tricot, costura, patchwork, e derivados. Mas não só. Um exemplo conjugado no masculino, é o do Tom of Holland, de que tomei conhecimento agora, com o seu projecto “Visible Mending”. (A ideia suscita-me uma série de divaganços que talvez justifiquem um outro blog post.)

De forma clandestina, com a criação de peças que denunciavam situações de opressão (como o caso das arpilleras durante a ditadura chilena), ou de forma mais expansiva e visível, como com as sufragistas, historicamente as mulheres encontraram nos lavores uma forma de expressão individual, de empoderamento colectivo, de emancipação e construção de redes de solidariedade, e de transformação social e política.

Que sentido faz?

Todo! A própria natureza da técnica convida à reflexão, e é em si mesma uma forma de activismo. É uma acção disruptora, que contraria, critica e oferece um meio de resistência ao status quo, aos paradigmas que regem e constrangem o indivíduo em dado momento e lugar.

À sociedade de consumo hiper-tecnológica e automatizada, refém da eficiência e da rapidez, padronizada, os “crafts” oferecem uma alternativa: feitos à mão, da forma mais artesanal e analógica possível, lentamente, i.e., ao ritmo natural do ser humano, são uma expressão da nossa individualidade, da nossa criatividade, com defeitos e tudo. Através dos “crafts”, colocamo-nos como criadores e produtores activos, como agentes de mudança, e não como consumidores passivos.

Por isto, o Craftivismo pode ser uma ferramenta poderosa de transformação pessoal e colectiva. De emancipação e empoderamento, capaz de despertar a nossa auto-confiança, de alimentar a nossa resiliência individual e comunitária, de contrariar a sensação de impotência, ao experienciarmos, despertarmos e comprovarmos em primeira mão aquilo que há de mais humano em nós: a imaginação, a criatividade, a capacidade de fazer usando as mãos em simbiose com a mente, engajando as nossas emoções e criando relações com o Outro.

As nossas emoções e não só. Porque uma das mais-valias do Craftivismo por comparação com o activismo mais familiar, é que inspira uma reacção também ela diferente nos outros. Existe uma ligação sensorial, mais íntima e profunda, com um objecto feito à mão, táctil, onde é possível perceber e imaginar os gestos que o criaram, o cuidado com que foi feito, o tempo e a atenção que foram dispendidos no processo. Com todos os seus defeitos e peculiaridades e as idiossincrasias de quem fez, porque não há um objecto igual. Como cada um de nós, cada um desses objectos tem um carácter único e irrepetível. Da mesma forma que, ao oferecermos algo que fizemos com as nossas mãos a alguém de quem gostamos, estamos a passar uma mensagem especial e a dar algo com outro valor, independentemente do custo – estamos a dar do nosso tempo, – a oferta de um objecto “craftivista” pode também ser entendida como um presente, uma forma de comunicação mais pessoal e intencional do que uma assinatura numa petição. E com isto, estamos a derrubar barreiras e a construir pontes no seu lugar.

Mas como pode funcionar?

O Craftivismo não ocupa nem retira o lugar a outras formas de activismo. São todas importantes e cada uma desempenha o seu papel e tem o seu momento e propósito. O que funciona será precisamente a conjugação de diferentes tácticas, enquadradas numa estratégia concertada, pensada como um todo.

Alterar uma lei ou forçar decisores políticos num determinado sentido, passa muitas vezes por assinar petições e participar em manifestações. Mas nada invalida que mesmo estes actos sejam revestidos de uma outra forma de estar, mais dialogante e menos confrontacional, e mais virada para a construção de soluções e de alternativas, para a transformação das próprias estruturas que estão na origem dos problemas contra os quais protestamos de forma agressiva ou gentil. O objectivo não é tanto ser contra quanto é ser a favor de alguma coisa. O grande propósito passa por derrubar as estruturas opressoras, problemáticas, injustas, mas deve dirigir-se para a construção de estruturas alternativas que vão de encontro à visão que temos para um mundo mais belo e justo para todos os seres e todos os elementos de/da Vida. Depois de derrubadas essas estruturas, o que se constrói sobre os destroços?

E depois? Ou melhor: e agora?

Este é apenas o primeiro artigo sobre Craftivismo. Conto voltar à carga em breve e várias vezes. É um mundo! Agora deixo aqui alguns artigos e vídeos para ilustrar tudo isto, e abrir portas para que possam também começar a explorar este mundo. E faço-vos o convite a que regressem aqui (sempre e as vezes que quiserem), e partilhem o que vos passa pela cabeça, para pensarmos em voz alta no que se pode fazer. Com que linhas nos podemos coser…? É nisso em que tenho estado a ruminar e ainda não tenho um plano concreto, apesar de ter já criado um grupo no facebook com este objectivo. Ideias tenho bastantes, mas foco nem por isso, e para um projecto como este ser consequente, precisa de estratégia… e de gente! Em breve, vou estar presente num debate em forma de conversa, onde espero aprender muito e ganhar (algum) rumo. Volto depois aqui para contar como foi, e divagar sobre as ideias que não me deixam dormir à noite e me fazem sonhar acordada.

Até breve!

Ana

História e apresentação do Craftivist Collective

Uma das várias palestras da Sarah Corbett em eventos TEDx

O Craftivismo pelas palavras de quem cunhou o termo, a Betsy Greer

Um vídeo sobre a História do Craftivismo, de Sayraphim Lothian

Uma entrevista inspiradora com a Gugui Cebey, craftivista

A Campanha Linha Vermelha, um exemplo de craftivismo em Portugal (website e facebook)

4 comentários a “Divaganços sobre “craftivismo”: do protesto sussurrado e feito à mão

  1. Obrigada eu, Andreia! Mais uma vez, porque entretanto comentei n’A Lua. 😊 E acredito que 2018 vai ser especial, sim. Estes “encontros” são um bom augúrio. 😊

    Gostar

Deixe um comentário